31.7.07

P.331: Sucatice e afins

Ouvi, com muito agrado, que o país passa a ter mecanismos directos e eficazes de acabar com as sucatas, lugares a céu aberto, desorganizados, feios, deprimentes.
Gostaria que a medida abrangesse, não sei se é o caso, os depósitos selvagens de lixos e entulhos. São ainda muito frequentes e se permanecem, mesmo em zonas consideradas património mundial – veja-se o Douro vinhateiro –, não deve ser apenas fruto da incúria autárquica, mas falta do tal “enquadramento” que permite passar da identificação dos casos à actuação. O resto, a prevenção, terá que continuar na difícil fiscalização e na demorada, mas essencial, formação. Chegaremos lá, estou certa, da mesma forma que, em vinte e cinco anos, acabámos com as moscas nos estabelecimentos alimentares e passámos a respeitar bastante escrupulosamente a passagem dos peões nas passadeiras…

30.7.07

P.330: Reconciliação


Há imenso tempo que eu não via televisão…! Notícias à refeição e muito pouco mais. Assistência “fidelizada” de programas, nenhuma. Perdeu-se o hábito há muito, com o desinteresse das emissões, a repetição à saciedade das mesmas fórmulas acéfalas, por um lado, o trabalho mais exigente e a banda larga de Internet, por outro e, ainda, o desconhecimento e esquecimento a que fui votando o que, apesar de tudo, se faz ainda de bom em TV…

Estas férias, por razões várias, tem-me sobrado tempo para ver televisão e a RTP 2 é precisamente o canal com maior nitidez no receptor disponível! Boa combinação: o tempo, que andava fugido, e o canal televisivo, que andava injustamente ignorado…!

Tenho tido algumas surpresas agradáveis. Escrevo estas linhas depois de momentos bem passados com o último programa da temporada de «Câmara Clara». Quase já esquecera quanto uma conversa inteligente pode ser despretensiosa e tornar-se um interessante programa em que o novo e o conhecido se entrelaçam harmoniosamente, em que as reflexões alheias suscitam as nossas, motivam recordações, nos deixam diferentes daqueles que éramos no início…

E este é apenas um exemplo do que tenho vindo a (re)descobrir num canal público que quererei, a partir de agora, acarinhar… como espécie que eu acreditara extinta e, afinal, ainda conserva alguns exemplares dignos.

29.7.07

P.329: Ontem à noite


Ouço a festa ao longe, sons populares. Não me move. Mantenho a solidão forçada num ambiente que habitualmente só é meu em par. Há algo de surreal nesta clausura entre paredes geralmente partilhadas… A vida é a mais insólita e a mais inverosímil narrativa que conheço!!

28.7.07

P.328: Paris, je t'aime

Pequenas narrativas, diversas, ricas, nos contos e nas formas de contar. Roteiro da cidade em histórias sucessivas. Amar(es) em Paris, múltiplos, diferentes e, ainda assim, apenas amostra das histórias vividas na grande metrópole…
Só Paris as une: mães órfãs de filhos, americanos vividos, gente rusée ou naïve, deficientes, vampiros da noite - num rasgo de fantástico -, turistas em lua-de-mel-e-fel, sub-mundo, clientes do Ritz, artistas, gente comum…
Não se mostra tudo. Não se fica pela parte. Condensa-se com arte.
Há de negro e de cor de rosa tanto como das cores indefinidas, nas histórias que não sabemos bem o que foram.
Nem tudo tem nome quando nasce e se esvai pelas ruas incertas de Paris…
Muito giro!
As curtas-metragens pertencem a vários cineastas. Uma ideia de Tristan Carné, concretizada por Emmanuel Benbihy e Claudie Ossard.












(Mais aqui e aqui).

26.7.07

P.327: Sobre o paraíso



Os paraísos existem na terra. Fazem-se de cores, de sons, de pessoas connosco e nós com elas, ou de ninguém, de harmonias de tom e gosto, de momentos, do ar e dos aromas, às vezes de sabores.

Os paraísos existem nas vidas. Sensações-lugares-tempos plenos, para onde nos evadimos em dias de inferno…!


(Fotografia de Carlos Sampaio)

25.7.07

P.326: "Ir ao encontro de..." ou "ir de encontro a..."?

(clicar na imagem)

Serve o desenho de Mordillo para mostrar a situação de quem, querendo ir ao encontro, foi de encontro ao outro. Isto acontece algumas vezes na vida, é verdade, movimentos de harmonia que acabam em tremendos choques.

Mas o mais frequente é gerar-se uma confusão linguística; é querer o falante dizer que tal “foi ao encontro de” e acabar dizendo precisamente o contrário: que “foi de encontro a”…! Se tivermos em conta que uma forma traduz a harmonização e a outra o confronto, temos que reconhecer que não é pequeno o engano!

Na dúvida, vá ao encontro de… Mas, se não puder evitar, vá de encontro a… e depois, logo se verá…! :-)

23.7.07

P.325: Julho ou Novembro?


Nem dá vontade de pôr o pé na areia, húmida da chuva da véspera, escurecida pelo cortejo de nuvens, lá no alto, batidas de um vento que arrepia.
Andam escondidos os decotes por agasalhos de outra estação, envergonhados os bronzeados pálidos da meia dúzia de horas roubadas a um sol avarento.
Os anseios transformam-se em previsões repetidas: é quarta-feira, é no próximo fim de semana, é na segunda quinzena…
E um Outono atípico vai correndo por nós, somando horas a dias estranhos, que desconcertam…!
Se não fosse por parecer de uma banalidade sem desculpa, até eu afirmava, já aqui, os anos que tenho e a convicção de nunca ter vivido um Verão assim!!!

21.7.07

P.324: Presença e ausência

Ainda Deus, num diálogo-monólogo do poeta... Testemunho forte e verdadeiro.

Desfecho

Não tenho mais palavras.
Gastei-as a negar-te...
(Só a negar-te eu pude combater
o terror de te ver
em toda a parte).

Fosse qual fosse o chão da caminhada
Era certa a meu lado
A divina presença impertinente
Do teu vulto calado
E paciente...

E lutei, como luta um solitário
Quando alguém lhe perturba a solidão.
Fechado num ouriço de recusas,
Soltei a voz, arma que tu não usas,
Sempre silenciosos na agressão.

Mas o tempo moeu na sua mó
O joio amargo do que te dizia...
Agora somos dois obstinados,
Mudos e malogrados,
Que apenas vão a par na teimosia.


Miguel Torga, Câmara Ardente

20.7.07

P.323: Cor, desenho e luz

... da palavra de Deus.

Quando li pela primeira vez o Evangelho segundo São João tomei-o, antes de mais, por um belíssimo trabalho poético. Só isso era suficiente para o tornar sagrado.
Ao ser-me proposta a realização destes vitrais, e depois de uma visita à bela Sé de Vila Real, foi de modo muito natural que me vieram à memória as leituras do Evangelho.
Escrever nos vitrais palavras de luz, dar forma às palavras de modo a que elas iluminem os homens, eis o meu programa para a sua execução.


João Vieira



17.7.07

P.322: Número convencional

Querido aluno

Fica sabendo que, ainda que me chegues apenas com um número, aquilo que escreves será sempre de alguém com nome, qual, não sei.
Deito-me a adivinhar como és, quanto mais não seja porque me habituei a lidar com gente, já com números… Enfim, adiante!
Descubro-te primeiro o sexo. Fácil, depois de uns quantos anos de escritos de meninos e meninas passando pelas mãos! Imagino-te depois os traços da personalidade, o gosto ou o fastio com que escreves sobre o que te é pedido, até a ansiedade, a desilusão ou a indiferença com que lerás o resultado na pauta…!

Querido aluno, permite que me engane e que cometa, até, alguma injustiça. É só na imaginação que me deixo levar. Os números são frios e vêm de cima. Aplico-os com método e rigor, sem vacilações.
Mas depois, fico olhando a mancha do teu texto, imaginando as ilusões de uma idade que sei num tempo que desconheço, as desilusões que desconheço neste tempo que sei… Misturo as cores e desenho-te, enterneço-me ou insurjo-me… Passo ao seguinte.
Um pouco do teu futuro esteve nas minhas mãos. Não o esqueço. Pulsa um coração por trás do número convencional a vermelho, no cimo da tua prova…

15.7.07

P.321: Rien?!

Há 218 anos, em Versalhes, o rei Luís XVI dormiu ainda a sua tranquila noite de sono, depois de um dia de caçada que terminou, ironicamente, com uma só palavra registada no diário: Rien.
Foi apenas pela manhã de dia 15, ao despertar, que o duque de Rochefoucauld-Liancourt o informou da tomada da Bastilha na tumultuosa véspera em que o rei caçara, alheio aos acontecimentos de Paris… «É uma revolta?» – terá perguntado o soberano – «Não, sire, não é uma revolta, é uma revolução» – terá respondido o duque… Ao certo sabe-se o que se seguiu: uma revolução tão sangrenta quanto decisiva, que abalou a França e sacudiu toda a Europa... Depois dela, nunca mais nenhum desses países permaneceu exactamente o mesmo.

(Clicar na imagem)

11.7.07

P.320: Livros - III


Hoje abro excepção para falar de um livro que ainda não li. :-) Não o li, mas sei com o que conto pela experiência anterior com A Lua pode Esperar e muitas referências conhecidas a Planisfério Pessoal. É por isso que, estando a chegar ao cimo da pilha dos que aguardam vez, tenho já junto a ele o pequeno Atlas com que precisarei de acompanhar a sua leitura, para que muitos dos sítios das viagens relatadas se-me tornem mais que nomes, vogando e perdendo-se na memória, sem pontos cardeais.
Sei com o que conto, mas não perco em novidade nem em surpresa, nem na admiração e no agrado…! A terra é vária, o autor é andarilho, atento, e o seu olhar pousa sobre o que eu quereria ver e deixa adivinhar o não dito…
No conforto da horizontal – posição em que idealmente leio –, faço descobertas, página a página, crescendo em admiração pela solidez de um viajante solitário e em contra-corrente.
Esta noite, parto pela África Acima, nas palavras de Gonçalo Cadilhe.

9.7.07

P.319: Hebdomadaire


Eu tinha um professor, no Instituto de Francês, que era um original, até no nome…! Não direi como se chamava, mas direi que me impressionava e que ainda hoje, eu mesma do métier, sonho às vezes com a sua liberdade, com as suas aulas sem regra e tão aulas, tão emoção, tão aprendizagem, tão impróprias para relatar e tão ricas que, a mais de 20 anos de distância as lembro e me ficaram e, se pudesse, gozaria dessa mesma liberdade de equilíbrio nas costas da cadeira sentada, olhando os meus alunos com curiosidade, e dissertaria sobre coisas que me interessassem e os interessassem, autores que ando a ler, por exemplo, e que me serviriam, tão bem quanto outros mais canónicos, para falar deste milagre que é comunicar com arte e dizer o que é universal e intemporal e pode ser dito infinitamente, se infinita for a humanidade…


8.7.07

P.318: Talvez maravilhas...

Não acompanhei quase nada este concurso das sete maravilhas do mundo, não estive a par de objectivos nem de critérios e muito pouco da forma como decorreu. Mas tive curiosidade, claro, de saber o resultado e a tendência natural de o conferir pelo próprio conhecimento e opinião.
Dos vencedores, visto claramente visto, só o aqui mais próximo Coliseu de Roma que, diga-se, embora tendo impressionado, não classificaria de maravilha. As outras maravilhas eleitas são (ainda…) apenas nomes do imaginário, imagens televisivas ou livrescas ou, em alguns casos, desenhadas pelos relatos da minha mãe, que já percorreu mais mundo.
Mas não todas. O Cristo Redentor, por exemplo, só o concebo maravilhoso pela paisagem que se derrama à sua volta… E sobre Petra e Chichén Itzá não chega o que sei para opinar. A Muralha da China pela obra colossal, o Taj Mahal pela beleza feérica, Machu Picchu pela História e pela geografia do lugar, foram escolhas que não me surpreenderam.
Verdadeiramente maravilhoso é que o mundo conheça as suas maravilhas, lhes queira e as preserve… Será...?

Um edifício do Kremlin e a Catedral de S. Basílio, na Rússia, que se encontravam entre os nomeados.

5.7.07

P.317: Livros - II

Pedro e Inês em


Os Lusíadas
La Reine Morte
Inês de Castro
Inês de Portugal


A história do grande amor em diferentes versões, lidas com intervalos de idade e nuances de perspectiva.

Contemplação em Alcobaça. Seguida de…

Primeiramente, lírico e belo, o episódio d’Os Lusíadas, encantatório e tão verdadeiro no seu engano da alma ledo e cego, que a Fortuna não deixa durar muito…!

Drama, depois, pela visão um tanto misógina de Henry de Montherlant… La Reine Morte. Marcante.

Ainda, a narrativa de Maria Pilar Queralt del Hierro, Inês de Castro, focalização do/no feminino… Empolgante!

Mais recentemente, Inês de Portugal, que é sobretudo a história do sofrimento demente de Pedro, na pena fina e rigorosa de João Aguiar. Forte e inesquecível.

E, em fins de leitura, sempre a mesma admiração pela intemporalidade e universalidade da paixão-proibição-comunhão-amor…

3.7.07

P.316: Gente gira - Elsa e Cunki

Viagem que se preze tem que incluir cruzamento de vidas. Ele era turco, ela russa, de uma terra qualquer que não consegui “descodificar”, algures a mil quilómetros de Moscovo.
O mundo artístico também é global (em vários sentidos) e a juventude um tempo de adaptações fáceis. Por isso, faziam de tudo: canto, dança, teatro, ginástica, corridas entre o público, em apelo às palmas, reconhecimento universal do talento ou sinal da complacente boa vontade dos clientes do hotel…
Vieram partilhar a nossa mesa do jantar em meia hora de conversa bem disposta sobre os países de cada um. Do nosso, sabia ele que é “muito turístico”, ela não ouvira sequer falar – se fixou, terá aprendido qualquer coisa.
Afinal, a curiosidade esteve sobretudo do nosso lado e o conhecimento também… Mera questão de idade. :-)
E o trabalho? Sazonal. Para já, cinco meses de contrato ali, com direito a cama e mesa…, um luxo! Depois…? Logo se verá.
Quanto a nomes, o dela é “internacional”, mas o dele motiva um pedido: por favor, não me chamem “Junkey”…! Têm andado americanos por aqui… ;-)

2.7.07

P.315: Livros - I

A Irene, em Umaetrintaesete, lançou-me o convite para falar de livros. Escolher cinco...?! Vai ser difícil. Enquanto não me decido, registo o primeiro, aquele que marcou não pelo seu valor intrínseco, mas por ter sido o início que recordo na aventura de ler.

(clicar na imagem)

Férias da Páscoa em cidade de província. Talvez eu andasse chata ou tristonha. Não creio que me atrevesse a pedir muitas atenções. Vinha longe ainda o tempo de a gente miúda ocupar o primeiro plano e saber exigir. Os adultos andavam ocupados. Havia uma prima prestes a nascer, irmãos e primo pequenitos para cuidar. Alguém se apiedou da minha desocupação e se lembrou que talvez fosse tempo de começar a ler uns livros. Até ali só me tinham chegado histórias muito ilustradas, como a colecção completa da Anita, lida e revista e já aborrecida. Numa livraria velha da rua Direita compraram-me um livro do Clube dos Sete, de Enid Blyton. E assim começou. Com esse livrinho de aventuras mergulhei completamente no prazer de ler. Tenho uma memória viva da alegria que senti ao perceber, nessa altura, o filão que tinha descoberto. As horas da minha “solidão” infantil de irmã e prima mais velha tinham terminado…!