27.12.07

P.379: A medida do mundo

«Todos nós criamos o mundo à nossa medida. O mundo longo dos longevos e curto dos que partem prematuramente. O mundo simples dos simples e o complexo dos complicados. Criamo-lo na consciência, dando a cada acidente, facto ou comportamento a significação intelectual ou afectiva que a nossa mente ou a nossa sensibilidade consentem. E o certo é que há tantos mundos como criaturas. Luminosos uns, brumosos outros, e todos singulares».

Miguel Torga, A Criação do Mundo

21.12.07

P.378: Presépio

Uma das características nacionais mais saudáveis é a da imaginação criativa humorística. Algo acontece e, num curtíssimo prazo, aí está a anedota certeira a denotar a atenção do povo e a sua tradição de ridendo castigat mores, tão bem aproveitada pelo nosso primeiro dramaturgo, Gil Vicente.
Em cada ano, também, uma nova versão do Presépio que vamos não tendo… Aqui fica, com o meu sorriso e a minha aprovação – embora sobre o burro deva confessar que nada sei... –, a recebida este ano:

«Este ano não vai haver presépio:
– A vaca está louca, não se segura nas patas...
– Os reis magos não podem vir porque os camelos estão no governo...
– O burro está a treinar o Benfica...
– A Nossa Senhora e o S. José foram meter os papéis para o rendimento mínimo...
– A ASAE fechou o estábulo por falta de condições...
– O tribunal de menores ordenou a entrega do menino Jesus ao pai biológico...»
(Texto enviado por Carla Maia)

14.12.07

P.377: Telemóvel, Hi5 e Wikipédia

Todas as profissões atravessam desafios de modernização consideráveis, de várias índoles e em diversos níveis. Ninguém, actualmente, consegue repetir modelos de procedimento vários anos seguidos, como no passado acontecia. O meu professor de Latim do Secundário aplicou durante dois anos o mesmo modelo de aulas, porventura os mesmos exercícios e exemplos, que utilizara quando fora professor da minha mãe, vinte anos antes! Impensável, agora! O ensino é um dos sectores mais “moventes” neste domínio, pela sua própria natureza, objectivos e intervenientes.
Hoje, na prática lectiva, logo a seguir aos problemas de atitude – leia-se faltas de educação –, ou entrelaçados com eles, surgem os três “inimigos” enfileirados no título. É preciso contar com eles, detectar-lhes a presença, controlar o uso, competir na atenção.
A Wikipédia podia ser uma aliada, se fosse utilizada com cuidado e a par de outras fontes, não como uma magister dixit incontestada, quando sabemos, e não me canso de avisar os alunos desse facto, que qualquer um pode alterar o conteúdo dos seus artigos e que o controlo da verdade e fundamento dos mesmos é feito, também, maioritariamente, pelos próprios utilizadores. Mas a tentação é grande: dorme-se mais um coche, fazem-se bue de saídas com os amigos, e na véspera da entrega do trabalhito, está lá tudo, só à espera de ser copiado! Nem vale a pena ler… é colar, acrescentar mais umas imagens sacadas do Google e tásse bem!
O “tel” é outra história: é o vício já, a mão irrequieta sobre as teclas, aquela vibração, como um pulsar vital de coração! Este ano, em Setembro, tivemos que abrir as hostilidades, declarar guerra, anunciar sanções. Mas o conflito promete ter muitas batalhas.
O Hi5 é um verdadeiro fenómeno de popularidade! Não há adolescente que não tenha o seu! E em aulas em que haja pesquisa para fazer na Internet, quão mais agradável não é dar lá um salto a conferir as mensagens, ou a vasculhar as novas fotos da centena e meia de amigos e amigos dos amigos e ainda amigos desses, que fazem parte da grande “comunidade íntima”…! Ali “se constroem” como querem que o mundo os veja, acentuando traços, afirmando o que muitas vezes é (ainda?) imperceptível na sua personalidade, exibindo as amizades como trunfos.
Um fenómeno a que terei que voltar.

10.12.07

P.376: Crispação

A propósito do post anterior, alguém me lembrou a greve que não fiz…

E aqui vai o meu lamento por a luta, em mim, não ser, as mais das vezes, dor que se sobrepõe à dor, mas dor que se acrescenta…

9.12.07

P.375: Sim, Sra. Ministra!

Reunião com a Ministra da Educação e sururu de bastidores sobre as novas medidas que aí vêm…! Desta é que é: os professores – diz-se à boca cheia – passarão a estar obrigatoriamente 35 horas semanais na escola. E o povo ignaro aplaudirá, porque o suposto mal dos outros sempre há-de contentar as almas dos mesquinhos e dos invejosos.
Venham elas, Sra. Ministra! Mas venha também a secretária, o computador individual, o gabinete, o aquecimento, a impressora, o telefone… um fundo documental especializado, como aquele que possuo em casa, sempre à mão.
Se a Sra. Ministra assim o deseja, fique sabendo que a mim até me dará imenso jeito, uma vez que a Sra. me mantém há seis anos sem aumento de remuneração, gastar menos em energias e em papel e em desgaste dos meus equipamentos pessoais. Assim como me cairá às mil maravilhas poder resolver todas as pendências de trabalho no local próprio e poder gozar de fins de semana inteiriiiinhos, que é coisa que muito raramente me calha em sorte.
Uma sugestão, Sra. Ministra: antes de qualquer decisão, transforme-se em "mosca coscuvilheira" e faça uma itinerância pelas escolas do seu país. Venha sentir o ambiente ruidoso dos 50 metros quadrados da sala de professores de muitos estabelecimentos de ensino, experimentar a vintena de cadeiras, as três mesas, os quatro computadores obsoletos e a impressora sem tinteiro… para 80 professores. Venha! Deixe-se contagiar pelo ambiente e tente, depois, produzir alguma ideia válida para a educação!
Ou será que esse foi o sacrifício a que a sujeitaram já e é por isso…??

5.12.07

P.374: Sol


Quando a palavra "sol" saiu a concurso de fotografia no blogue «Palavra Puxa Palavra», esta foi uma das minhas fotografias pré-seleccionadas.
Para além da presença forte da luz, visava a evocação mais subtil do rei que apôs a sua assinatura à ordem de execução desta beleza paisagística, das mais presentes em álbuns fotográficos de férias espalhados por todo o mundo: le roi Soleil, Louis XIV.
Na imensidão sumptuosa do palácio e jardins de Versalhes, como até noutros de menor dimensão, fora das nossas portas, costumo lembrar o que conheço do património afim português... e até por essa comparação percebo como fomos sempre, no contexto europeu, pobres e pequenos! Nem do tempo mais farto dos Descobrimentos e riquezas coloniais nos ficou habitação real ou senhorial notável...! Mafra?... Só pelo tamanho.
De resto: Sintra, Queluz, Ajuda, Vila Viçosa, Évora, Guimarães... Pequenos. Alguns bonitos. Pelo menos um, inacabado...
Em património solarengo, não nos coube muito. Já em Sol...! E esse é mesmo pertença de todos! :-)))
A minha escolha fotográfica recaiu por fim, muito justamente, num Sol de Inverno português, reflectido na mui bonita e patrimonial Casa da Música portuense.

1.12.07

P.373: Visões

Dedicado a todos aqueles a quem a minha visão de míope transformou em gente bonita que não era.


Tenho uma pequena miopia, coisa de infância nunca devidamente tratada, primeiro por teimosia adolescente, depois por negligência adulta.
Foi ficando e proporcionando, no quotidiano, aqueles fait divers das confusões inerentes. Não sei quantas vezes fiz figura triste por, por exemplo, cumprimentar desconhecidos na rua ou ignorar pessoas que deveria cumprimentar… Pior só mesmo os enganos nas leituras de informações, ao longe.
Mas nada que não se vá resolvendo. E para situações de imprescindível acuidade visual há uma lente de pôr e tirar ou uns óculos à mestre-escola que podem ser usados, desde que sem testemunhas…
Habituados que estão os meus olhos a ver como lhes apetece, se interponho entre eles e o mundo um auxiliar, reagem com revolta e devolvem-me uma visão mais clara, é certo, mais definida, mas também, hélas, mais feia e mais crua da realidade vizinha…!
O meu universo de míope, de contornos esbatidos e impressões de cor é infinitamente mais bonito do que o quadro hiper-realista que grita através das lentes!
Este “mal” físico tem em mim um equivalente psico-social. A minha visão dos outros é tendencialmente suave, preferencialmente bonita e ignorante dos pormenores de horror.
O problema é quando algo ou alguém me obriga a ver através da lente transfiguradora, espécie de filtro da verdade, e eu não posso já teimar como uma adolescente ou ignorar como uma adulta negligente e sinto a realidade feia do mundo bater-me na cara…