14.12.09

Página absurda

Se eu soubesse pintar, hoje o meu quadro teria tons de dor e nele haveria uma parada de vultos definidos de ausentes e uma longa fileira de esboços presentes, perfilados aquém linha, ténue risco que se desenha, mais ou menos longe, mas sempre demasiado perto de cada pessoa expectante: a passagem.

Se eu soubesse pintar, ver-se-ia na tela a falta que fazem os que claramente transpuseram a fronteira, a dor que carrego da cegueira de os não ver, o saber como eram junto a mim e a minha ignorância inquieta sobre o seu não-ser.

Se eu soubesse pintar, a minha tela representaria risos fugazes e envolveria o conjunto na densidade de uma lágrima, como quem encorpora a massa dura de uma vida na leveza de um paliativo de textura efémera.

Se eu soubesse, haveria redutos de branco em muitos pontos do meu quadro, forma de representar almas e memórias, de outros, de mim com eles, nos mundos de cá e de lá, por onde nos vamos, cada vez mais , repartindo e derramando.


Ao Toné, no dia da sua morte.