31.10.06

Página 111: Sobre o tempo e o vagar.

Salvador Dali
Persistence of Memory1931
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Quando eu era miúda, o tempo que os adultos tinham ou não tinham para as coisas dizia-se vagar. A minha avó, que era mulher de muitos trabalhos e pouca preguiça rematava muitas vezes os nossos pedidos com um peremptório “e eu lá tenho vagar p’ra isso!”, ou contemporizava que “quando tivesse vagar”…
Hoje, não sei se só por estas bandas, o vagar foi proscrito da conversa e não parece ser apenas uma questão de moda linguística. O vagar é, era, um tempo gasto sem pressões e sem pressas, a disponibilidade de um tempo dedicado.
Mas o tempo encheu-se de outras coisas e passa ligeiro, para não se atrasar. E o vagar, esse, perdeu o tempo de ficar!
(imagem googleada)

21.10.06

Página 110: Johann Strauss e o direito ao aborto.

Que título estranho! Que relação? Que significado?
Reminiscências. Relações que o cérebro comanda, activando a memória de coisas que afinal não se desperdiçaram!
Qualquer coisa do serviço noticioso de hoje trouxe a galope, de não sei onde, a recordação dessa série televisiva, vista na infância. Nem a relação é directa, nem o episódio havia sido actualizado, em muitos anos, coisa estranha! Mas figurou-se-me ali logo, inteirinha, a cena do médico assistente do parto do(s) primeiro(s) filho(s) de Johann Strauss pai, momento de crise e pergunta decisiva: salva-se a mãe ou a(s) criança(s)?!...
Eu teria quê? Nove ou dez anos?...
Já se percebeu que o parêntesis comporta uma dúvida sobre a hipótese de gémeos, que creio que eram; de toda a maneira só um sobreviveu. E do que acabei de afirmar se deduz a resposta do pai Johann, avô do Danúbio Azul.
Eu teria quê? Nove, dez anos?... A questão do médico deixou-me suando frio, a decisão de Strauss gelou-me! Ela era a companheira, jovem, bonita, apaixonada…! Ou eu percebera mal o filme? E era aquele rapaz, futuro pai (ou não…), que tinha que carregar o peso de uma ou mais vidas?! Minha mãe, do lado, confirmava que sim, talvez já arrependida de me ter autorizado assistir àquela série, que na altura era ela a mulher da bolinha e nunca vi censora tão eficaz!...
Johann condenou a companheira e eu lamentei-o pelo tormento da sua decisão e iniciei o meu caminho de compreensão de que esta coisa de ser mulher, e de gerar o fruto do homem, acarretava riscos…
Hoje recordei isto, a propósito do discutido referendo. A relação não é directa. Mas penso, agora, que foi talvez o meu primeiro contacto com a questão da gestação e da vida, do poder de decisão sobre elas, dos perigos associados, da morte.
Fiel ou não à biografia familiar dos Strauss, a ficção colocou-me perante a realidade pesada desse poder e dessa angústia….