6.1.08

P.383: Cinzel e caneta

Por ser hoje dia 6 de Janeiro, como se fosse preciso razão.

Ergueu-se o poema, belíssima estátua, diante das palavras esculpidas de Miguel Ângelo. Há setenta anos.


Roma, 6 de Janeiro de 1938.

MOISÉS

Moisés de Miguel Ângelo e meu:
Força da terra a olhar o céu
Em desafio:
Ou Deus ou Nós, que somos naturais.
Animais,
Crocodilos do Nilo ou de outro rio!

Barbas em corda do rolar dos anos;
Pés terrosos, humanos,
Dos caminhos saibrosos da Verdade;
Tábuas da Lei na mão,
Tábuas da Lei do chão,
Única eternidade!

Cornos de fauno do brotar do cio:
Um farrapo a cobrir toda a nudez;
Veias no corpo, que a maré do rio
Enche dum sangue que não fica frio
Por mais que gele a pedra em que se fez!

Peito de quem bateu de encontro à fraga.
E a fraga se desfez em água pura;
Super-Homem do homem que ficou
Morto de fome quando o Pão faltou,
Porque o grito que deu não tinha altura!

Braços de lutador da Humanidade,
Pernas de quem andou no mar sem fundo:
E no todo que marca a tua idade
Um misto de Velhice e Mocidade
A dar a força adulta do teu mundo!

Grito da Natureza-Mãe;
Ânsia minha e de quem
No mais alto Sinai chamou em vão;
Sonho do mundo todo e de ninguém;
Pedra da Promissão!

Miguel Torga, Diário I