4.1.08

P.381: Ohh...!

(Interjeição desiludida de uns quantos)

O rali Lisboa-Dacar deste ano foi anulado. Não há condições de segurança para que se os senhores do primeiro mundo possam ter mais este gostinho de meninos ricos, nas terras paradisíacas pela natureza e miseráveis por tudo o resto desse continente vizinho, e cada vez mais perdido, que é África.
A mim, como se diz por cá, nem me aquenta nem me arrefenta. Nem creio que o prejuízo dos 3.000 envolvidos no evento seja demolidor, nem acredito que os benefícios para as populações africanas “visitadas” seja considerável e, portanto, lamentável a sua perda. E, pessoalmente, perco apenas algumas imagens bonitas de dunas e sunsets e meninos negros pasmando e tremendo ao ronco dos motores…

Sou pouco conhecedora desse vizinho grande e desgovernado onde estive tão escassas vezes, mas as palavras de um outro, seu viajante e admirador, que se viu na rota do rali, mas em sentido contrário, e com motivações bem diferentes, fazem sentido dentro de mim:

«Penso na minha situação. Aqui vou de Dacar a Lisboa, a conduzir um Mercedes pelo deserto fora, eu que nunca toquei o volante de um Mercedes, agora possuo um, homologado para o itinerário de rali mais famoso do mundo. Participo no Lisboa-Dacar. Mas, ao contrário dos outros participantes, a minha prestação dilui-se no quotidiano antigo da Mauritânia sem qualquer ofensa à sensibilidade local. O rali real, o que passa em sentido contrário, invade um espaço de pureza e luz cristalina com os valores mais sombrios e degradados que a nossa civilização soube criar: o desperdício insensato de energias não renováveis; a competição como fonte de estímulo e estima pessoal; o luxo ostentado em territórios de miséria e pudor; o complexo de superioridade civilizacional; a arrogância sorridente e a falta de respeito por outras culturas, outros modos de vida. (…) O meu Lisboa-Dacar pessoal está apenas no início. Um rali onde a arrogância cultural não existe, a competição não é um valor, e o que importa não é conquistar o deserto, apenas amá-lo de perto».

África Acima, Gonçalo Cadilhe
(fotografia daqui)