15.8.07

P.338: A caça


Há na minha vida histórias de caçadores amados. Esse, que é tema do texto anterior, não é o primeiro, porque antes dele e mais ainda que ele, há um avô, “o” avô – que me perdoe o outro, porque nestas histórias de sangue nem só o sangue fala –, que encheu algumas vezes a minha infância, e a cozinha da minha avó, de perdizes, rolas e tordos, e o prato de manjares de caça sublimes, como nunca mais, nem no mais genuíno restaurante, pago a preço de jóia, pude provar…!

Espingarda, cartuchos, colete, histórias de perdigueiros exemplares em obediência e na arte de “marrar”, histórias de madrugadas e de amigos e de merendas e de dias felizes e de maus momentos e de paisagens soberbas, que haviam de ser locais de bons piqueniques familiares, povoaram esse tempo.

Era um tempo em que, também, com alguma facilidade e sem grande arrepio, via a minha avó, professora de profissão e mulher de muitos combates, matar, ali mesmo no quintal, a galinha que havíamos de comer de cabidela ao almoço.

Gonçalo Cadilhe deu conta, no seu África Acima, já aqui referenciado, do quanto mudámos na sensibilidade a essas crueldades que, numa idade em princípio mais sensível, víamos como naturais. Hoje, continuamos a comer galinha, mas já não aceitamos assistir ou perpetrar a sua morte… Uma sensibilidade hipócrita?...

Seja como for, e voltando à caça, essa sim, sinto-a como obsoleta como “desporto” admissível. Gostaria que o meu avô, e Torga, seu contemporâneo, se vivessem ainda e tivessem a veleidade de caçar, o fizessem pela caminhada, pelo farnel, pelos amigos, pela natureza descoberta no palmilhar dos caminhos e dos montes a esmo e se apiedassem dos bichos num tempo em que são mais os caçadores que as presas…!

Hoje acordei às 6h00 da manhã com barulho insistente de disparos. Por trás da minha casa, num perímetro urbano, há uma veiga e alguns montes pintalgados de casas, por onde o som se propaga e ecoa. Foi durante o dia que soube a razão da violência do meu despertar… Reabriu a caça!

1 Comments:

Blogger PostScriptum said...

E é, sem dúvida um desporto inadmissivel; porém recordo-te que vivemos na sociedade de todas as barbáries.
Outro texto excelente.
Bj

agosto 16, 2007 8:43 da manhã  

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