15.10.08

P.459: [ãtoniu loβu ãtune§]


Lembrei-me várias vezes dele o fim-de-semana passado, de crónicas de um seu livro lido há muitos anos. Falava de gente apanhada nos pequenos, repugnantes, ridículos detalhes das suas figuras e situações, captados por um olhar inclemente que, à vista desarmada, não parece ser o do autor, mas ali – e tantas outras vezes – se revela assim. Era o montículo de caspa sobre o ombro, o pedaço de comida entalado nos dentes, a melena besunçosa roçando-nos o rosto no beijo de cumprimento, o cheiro sovacal que nos apanha na passagem, o ponto negro pontuando o queixo luzente, pêlos abundantes ou, pelo contrário, rarefeitos, jovialidades parvas, efusividades desmedidas, apertos de mão amolecidos… Ou se não era isto, eram coisas de idêntico calibre, humanas misérias, enfim. E, na altura, pensei na tristeza e solidão de quem assim perscrutava um mundo circundante de companhia tão lamentavelmente feio!
Mas talvez seja, afinal, mais uma questão da responsabilidade do tempo, esta do atentar sem remédio nos pequenos, repugnantes, ridículos detalhes das figuras e situações. Vem-me acontecendo agora. No sábado, dia de “evento” cultural, com alimento para o cérebro e para o estômago, sofri quase até ao vómito essa visão radiográfica da companhia circundante, entre petulâncias e alarvidades, fugindo quanto pude tanto a perdigotos de comensais como a snobismos de intelecto… E sou eu agora que me lamento por assim escrutinar um universo triste de pequenas misérias humanas.
Lembrei-me de António Lobo Antunes.

3 Comments:

Blogger aDesenhar said...

É bom pararmos de vez em quando
para olharmos o mundo que nos rodeia,
não de uma forma virtual,
mas real.
a vida é feita de pequenos nadas.
:-)
bj virtual(limpo)

outubro 22, 2008 2:05 da manhã  
Blogger Irene Ermida said...

E assim é o ser humano. Cultura não significa propriamente elevação intelectual ou boa educação.
Excelente, esta crónica!

outubro 26, 2008 10:44 da tarde  
Blogger APC said...

Eu lembro-me tanto dele!... E olha que o não leio nem escuto todos os dias, como é de calcular. Todavia, por entre o que dele passa e o que em mim se filtra, há sempre qualquer coisa que fica e que teima em aparecer à memória. Neste momento, é qualquer coisa que me importa e me comove. É curioso, né?

novembro 02, 2009 3:45 da manhã  

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