21.4.07

P.235: Passagem

Palavras bonitas sobre um amor bonito sem palavras. E nem por ser trocadilho é menos verdade. O amor é muitas outras coisas para além da melhor e mais bela definição, a camoniana. E entre elas também este esconjurar dos efeitos da passagem do tempo.


«Baltasar não tem espelhos, a não ser estes nossos olhos que o estão vendo a descer o caminho lamacento para a vila, e eles são que lhe dizem, Tens a barba cheia de brancas, Baltasar, tens a testa carregada de rugas, Baltasar, tens encorreado o pescoço, Baltasar, já te descaem os ombros, Baltasar, nem pareces o mesmo homem, Baltasar, mas isto é certamente defeito dos olhos que usamos, porque aí vem justamente uma mulher, e onde nós víamos um homem velho, vê ela um homem novo, o soldado a quem perguntou um dia, Que nome é o seu, ou nem sequer a esse vê, apenas a este homem que desce, sujo, canoso e maneta, Sete-Sóis de alcunha, se a merece tanta canseira, mas é um constante sol para esta mulher não por sempre brilhar, mas por existir tanto, escondido de nuvens, tapado de eclipses, mas vivo, Santo Deus, e abre-lhe braços, quem, abre-os ele a ela, abre-os ela a ele, ambos, são o escândalo da vila de Mafra, agarrarem-se assim um ao outro na praça pública, e com idade de sobra, talvez seja porque nunca tiveram filhos, talvez porque se vejam mais novos do que são, pobres cegos, ou porventura serão estes os únicos seres humanos que como são se vêem, é esse o modo mais difícil de ver, agora que eles estão juntos até os nossos olhos foram capazes de perceber que se tornaram belos».

Memorial do Convento, José Saramago