23.3.07

P.211: Improvisos

Improvisos em tom de azul sobre granito e colmo.
E, apesar da corda de nylon, há algo de não deliberadamente ecológico nestas reutilizações…
Restos de hábitos de vida sem desperdício.



(Lamas de Olo, Parque Natural do Alvão)
Conheci ainda e bem uma vida assim, ainda que urbana.
E, pelo carreirinho da memória, lembro o tempo do amolador de facas, lá na aldeia do meu pai, que também deitava um pingo nas panelas furadas e consertava guarda-chuvas (chapéus para os lixboetas); lembro as meias de vidro das minhas mãe, tia e avó, que iam para apanhar malhas; e, no mesmo local, se cortava a ponta dos nossos sapatos de criança, quando o pé crescia antes da ruína do calçado e era possível transformá-los em sandálias, assim como se aplicava joelheiras e cotoveleiras de napa nas calças e camisolas esburacadas da criançada; lembro um hospital de bonecas no Porto, onde a minha Tijuca foi, mais do que uma vez, para arranjar os membros partidos! Lembro até, imaginem só, a existência de tinturarias – havia uma na minha rua – onde as roupas, depois da bainha acima, bainha abaixo, aperta aqui, alarga acolá, batidas e esfoladas, iam mudar de cor para parecerem novas ou esconderem a nódoa resistente à benzina… E lembro, claro, ainda e também, os cordéis dos embrulhos, atados com arte, formando argola para o dedo transportar, com que se treinava a paciência no desfazer dos nós e se faziam, por vezes, pegas de cozinha; e os papéis de embrulho, dobrados e guardados; e… e…
Outro tempo? Sem dúvida. Se muito, se pouco longínquo, depende da perspectiva de cada um. Com toda a certeza mais pobre e nessa medida, pelo menos nessa, menos poluidor…

6 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Sim, claro... tudo isso e! o pitrolino? A vender pitróleo numa carroça com um depósito verde em cima. E a leiteira? Que levava o leite à porta, medido em medidas de alumínio e deitado para dentro do fervedor. E o padeiro? Escada acima, com a cesta do pão fresco tapado com um pano branco. E etc...? Em plena Lisboa, não era preciso ir para a aldeia.

A nossa santa terrinha é estreita e tem memória curta!

março 23, 2007 11:17 da tarde  
Blogger M. said...

Também conheci na cidade muito do que aqui contas. É estranho, parece que não foi há muito tempo e, por outro lado, parece que está longe.

março 24, 2007 10:40 da manhã  
Blogger bettips said...

Gostei tanto das tuas lembranças, assim escorridas da memória! Tudo isso e mais, porque há 50 anos, no centro da cidade ...era assim! Tenho imagens no meu pensamento, sons... peixeiras, azeiteiros, mulheres de baú azul à cabeça a levar o almoço aos trabalhadores, os almocreves??? pois que levavam as coisa às costas!...Um dia destes, dá-me a saudade e vou por esse caminho! Obg e bjinho

março 24, 2007 4:29 da tarde  
Blogger Diafragma said...

Adorei ler este texto, onde só me faltaram as sandálias com as solas feitas de restos de pneus.
Mas sobretudo adorei a foto da porta azul. Acho-a um espanto, e se fosse minha não ficaria só aqui de certeza. É uma fotografia para admirar todos os dias, ampliada e bem à vista num escritório ou onde quer que seja.

março 25, 2007 12:20 da tarde  
Blogger Irene Ermida said...

estas fotos de Lamas d'Olo não podiam passar em branco... é perto de Vila Real!
esta simpatia pelas coisas bucólicas como se as gentes que as vivem naturalmente, fizessem parte de um quadro despersonalizado, como se de uma condenação da natureza se tratasse, sempre me deixou perplexa.
As GENTES são a alma desta paisagem tão miserável e que em nada são favorecidas nem dignificadas... um elogio à miserabilidade como se de grande felicidade se revestisse?... incomoda-me, confesso.

março 26, 2007 11:46 da tarde  
Blogger Maria Manuel said...

Elogio à miserabilidade?!!... Nunca!

Elogios aqui, se os há, que a mim até me parecem meras memórias, são apenas sobre o que resultava, naturalmente, de uma vida sem desperdício (diz-se: "nessa medida, pelo menos nessa, menos poluidor…").

As fotografias e a sua realidade são aqui ponto de partida para uma evocação que está muito longe de glorificar a miséria!

março 27, 2007 12:12 da manhã  

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